A ovinocultura é uma atividade que acompanha a humanidade há dez mil anos e que existe no Brasil desde o seu descobrimento, embora na maioria das vezes considerada uma atividade de menor importância, desenvolvida em áreas marginais e símbolo de subdesenvolvimento. Fica difícil pensar em um carneiro reprodutor que custe R$1.000, imagine então um de R$1.000.000?
Essa imagem vem mudando: exposições, leilões e muitos, muitos novos criadores são a tônica da ovinocultura brasileira de hoje. Empresários com grande capacidade de investimento, de atuação essencialmente urbana, vêm vislumbrando na ovinocultura uma ótima oportunidade de negócio. Com isso, um volume considerável de dinheiro vem sendo injetado na atividade. Criar ovinos "virou moda" e, diferente do passado, essa atividade hoje tem uma imagem de status. Nesse contexto, quanto mais caros forem os animais, melhor. Nesse cenário, carneiros vendidos por R$1.000 não têm o menor interesse. Bons mesmo são os de R$1.000.000.
O mercado de ovinos em geral está bastante aquecido. Vendem-se animais, prenhezes, embriões e sêmen. Também existem novas formas de comercialização: lojas virtuais, leilões televisionados ou pela internet e shoppings são só alguns exemplos. Destaque especial deve ser dado aos leilões de elite e aos elevados preços que vêm sendo alcançados. Esses serão alguns dos assuntos tratados nesse artigo, preparado em três partes: nessa primeira, será apresentado de maneira bastante simplificada e pontual um sistema de produção intensivo focado no produto carne de cordeiro, caracterizando os animais recomendados para esse sistema, e quanto ele pode custar; na segunda, serão abordadas algumas das várias formas de comercialização praticadas atualmente no Brasil; no terceiro serão apresentados alguns aspectos da produção atual de ovinos de corte no Brasil, se comparando com o sistema de produção intensivo focado no produto carne e se discutindo algumas particularidades das práticas e estratégias comerciais em uso atualmente, seus benefícios e suas distorções.
Rebanhos comerciais
O principal objetivo de um rebanho comercial de ovinos de corte é produzir carne. Adaptando uma frase de Gipson, originalmente para caprinos, "todo ovino é um ovino de corte". Se considerado que todo ovino pode ser abatido e sua carne consumida, não há o que questionar nessa frase. Sendo assim, selecionar o que? Qualquer ovino serve para ser abatido.
Porém, essa pergunta pode ser feita de forma diferente: como deve ser um ovino de corte especializado? Aí, a resposta é bem diferente. E é esse animal que nos interessa. Ele deve ter uma série de características, como segue:
Bom desempenho reprodutivo, para que seja gerado um bom número de cordeiros para comercialização e fêmeas para reposição e comercialização. É interessante que sejam animais pouco sazonais, com elevada fertilidade, uma boa prolificidade e com um curto intervalo de partos;
Boa habilidade materna, pois além de gerar o(s) cordeiro(s), a ovelha deve cuidar bem dele(s), desde o nascimento até a desmama;
Bom desenvolvimento ponderal, atingindo o peso de abate o mais rapidamente possível, o que oportuniza a venda do cordeiro e conseqüentemente a capitalização do produtor. Nesse sentido, tanto o ganho em peso quanto o peso em determinadas idades devem ser considerados;
Boa conformação funcional, com bons aprumos, uma correta, longa e forte linha dorso-lombar, uma garupa longa, larga e ligeiramente inclinada, uma boa capacidade corporal, com bom comprimento, profundidade e amplitude, uma boa caracterização de corte, identificada pelas formas do animal, pela sua ossatura e pela sua musculatura e, por fim, feminilidade nas fêmeas e masculinidade nos machos. É avaliada pela observação visual do exterior dos animais, e são características que indicam e determinam produção e produtividade, ou eficiência de produção;
Boa adaptabilidade, com um bom desempenho em diferentes manejos e condições ambientais;
Boa resistência a doenças e problemas sanitários de uma forma geral, com especial atenção à resistência a endoparasitos;
Bom rendimento de carcaça, pois essa característica afeta diretamente o valor obtido pela venda do animal;
Boa proporção músculo:gordura:ossos, pois o objetivo é obter o máximo de musculatura, mas que necessita de uma mínima ossatura para sustentá-la adequadamente e gordura suficiente para favorecer sua suculência, sabor e resfriamento;
Boa distribuição do músculo na carcaça, com preferência para uma maior proporção no pernil, paleta e linha dorso-lombar, onde se localizam os cortes mais valorizados;
Carcaça com boa aparência, que inclui cor e forma, pois é o impacto visual que gera o primeiro impulso para a compra;
Carne com boas características sensoriais, para que o consumidor se agrade de seu sabor e aroma (não basta comprar, tem que gostar do que comprou para comprar novamente);
Carne com boas características nutricionais, pois esta é uma grande preocupação do consumidor moderno e pode ser um importante apelo de vendas.
Dessas características, muitas têm sua importância evidente e interessam diretamente aos produtores, pois interferem claramente em seus resultados, como fertilidade e prolificidade, por exemplo, que determinam a quantidade de cordeiros produzidos; outras são de maior interesse da indústria, como as proporções entre os cortes; algumas são de interesse do consumidor final, como características sensoriais e nutricionais.
Algumas dessas características podem ser buscadas por seleção, pois apresentam herdabilidade de média a alta e há disponibilidade de material genético com as características desejáveis; algumas com cruzamentos; outras com manejo e com as condições da criação; outras, ainda, embora de importância econômica, são difíceis de serem trabalhadas, podendo ser deixadas para um momento futuro, quando se justificar um refinamento dos sistemas de produção.
Nas fêmeas as características reprodutivas, de habilidade materna e adaptabilidade normalmente são as mais importantes. Nos machos, normalmente a prioridade são as características de carcaça, tanto de conformação como de rendimento.
Conforme os sistemas de criação, as exigências mudam um pouco. Em sistemas menos intensivos, desenvolvidos em condições mais adversas, a rusticidade é muito importante. Em sistemas intensivos, onde as condições para produção são melhores, a produtividade é mais importante do que a rusticidade. Assim, antes de adquirir um animal, é fundamental definir claramente como ele será criado, para que defina qual o animal mais indicado para aquele sistema. Além disso, como os sistemas de criação são diferentes, o animal ideal para cada situação varia consideravelmente.
Por fim, por bem desenvolvido e organizado que possa ser o sistema de produção, pode haver interesse em diferentes produtos: cordeiros super precoces, abatidos com até três meses de idade; animais precoces, abatidos com três a cinco meses de idade; e animais mais tardios, abatidos com mais de cinco meses de idade. Obviamente, as ovelhas e os carneiros necessários para produzir cada um desses produtos podem não ser os mesmos.
Quanto pode custar uma matriz comercial? Não mais do que o valor do que ela produzir em cordeiros e/ou cordeiras desmamados em um parto.
Quanto pode custar um reprodutor comercial? Não mais do que 10% a 20% do valor dos cordeiros e/ou cordeiras desmamados que ele produzir em um ano.
Nos rebanhos comerciais, as matrizes são produzidas no próprio rebanho ou em outros rebanhos comerciais, enquanto os reprodutores sempre vêm de fora, dos rebanhos multiplicadores ou elite.
Rebanhos de elite
Em um sistema de produção se deve inicialmente escolher quais as características mais importantes e passíveis de serem trabalhadas, de acordo com os interesses dos produtores, da indústria e dos consumidores finais. Depois, delinear um programa de melhoramento genético e/ou de cruzamentos que permita alcançar esses objetivos e obter animais com as características desejadas. Por fim, implementar o programa e monitorar os seus resultados.
O papel dos rebanhos elite é desenvolver a genética necessária para os rebanhos comerciais. Portanto, seus objetivos são comuns, mas suas estratégias muitas vezes diferentes. Exemplificando, como algumas características são mais importantes nas matrizes e outras no produto final, uma alternativa é trabalhar com "raça mãe" e "raça pai". Nessa situação, os rebanhos de elite criam e selecionam as raças puras, e os rebanhos comerciais as misturam, fazendo os cruzamentos.
Quando existem raças que contemplam tanto as características desejáveis nas fêmeas quanto nos produtos finais, cabe aos rebanhos de elite identificar e multiplicar os indivíduos que melhor expressam essas características.
Em qualquer uma das situações, os rebanhos de elite produzem a genética a ser utilizada nos rebanhos comerciais, onde o desempenho dos animais deve ser monitorado e as informações devem retornar para orientar o trabalho nos rebanhos de elite. Assim, fica bastante evidente a íntima relação entre rebanhos comerciais e rebanhos elite.
Mas, como identificar os melhores animais e, mais importante do que isso, aqueles que têm o maior potencial de passar essas características desejáveis para sua descendência? A resposta é simples: pelo cálculo da DEP (Diferença Esperada na Progênie) do reprodutor. De acordo com uma determinada sistemática, plenamente dominada por universidades e centros de pesquisa brasileiros, é possível calcular o quanto um reprodutor pode agregar à sua descendência, e isso pode ser feito para qualquer característica que possa ser convertida em um número. Essa é um informação fundamental para a escolha do reprodutor. Vale ressaltar que a importância de um reprodutor não está no que ele é, e sim no que ele é capaz de transmitir à sua descendência. É esse o seu papel no rebanho.
O preço dos animais de elite é bem mais difícil de ser definido, mas basicamente deve seguir um critério similar ao dos rebanhos comerciais: para uma matriz, não mais do que o valor do que ela produzir em cordeiros(as) desmamados(as) em um parto; para um reprodutor, não mais do que 10% a 20% do valor dos cordeiros e/ou cordeiras desmamados que ele produzir em um ano. Vale lembrar que os preços dos cordeiros e cordeiras desmamados em rebanhos comerciais e de elite é substancialmente diferente, o que leva aos diferentes preços dos animais comerciais e de elite. Nesses rebanhos (elite), tanto as matrizes quanto os reprodutores são produzidos em rebanhos também elite.
Estrutura de pirâmide
Uma atividade pecuária tem basicamente esses dois tipos de rebanhos: os comerciais, que produzem em larga escala o produto da atividade, nesse caso, carne de ovinos, e os rebanhos de elite, que desenvolvem e aprimoram a genética necessária para que esses rebanhos comerciais produzam de forma eficiente o que o mercado consumidor quer. Assim, essas atividades devem estar intimamente ligadas, trabalhando na mesma direção. Muitas vezes existe um segmento intermediário, denominado multiplicador, que tem a função exatamente de multiplicar o material genético desenvolvido nos rebanhos de elite e diluir o seu preço, disponibilizando-o para os rebanhos comerciais a preços mais acessíveis.
A quantidade de animais nos rebanhos de elite é determinada pela quantidade de animais nos rebanhos comerciais e suas necessidades de reposição e renovação, e pelas dificuldades para se trabalhar cada característica.
A proporção de animais em cada um desses segmentos pode ser representada na forma de pirâmide. Dependendo das características reprodutivas de cada espécie, e da fase de desenvolvimento em que a atividade se encontra, essa pirâmide pode ter diferentes proporções. Na figura a seguir é apresentada uma pirâmide representativa de uma ovinocultura de corte desenvolvida e estabilizada, onde para cada animal em um rebanho de elite existem 100 nos rebanhos multiplicados e 10.000 nos comerciais. Um aspecto muito importante a considerar é que, além da proporção entre os diferentes tipos de animal, os diferentes tipos de rebanho devem estar intimamente ligados por objetivos comuns.
Figura 1. Pirâmide representativa da proporção de animais em rebanhos elite, multiplicadores e comerciais em uma atividade desenvolvida e estabilizada.
Aguarde a publicação da 2ª parte desse artigo, que será publicada dia 14/08/2006.